Fragmentos sobre a violência sexual a uma menina de 10 anos.
O que a psicologia tem haver com isso?
“Quatro anos sendo estuprada e não falar nada com ninguém?
Será que ela é tão inocente assim? (..)
A maioria das mulheres hoje estão pior que cachorras no cio”.
Começo este texto provocada, angustiada e inquieta pela manifestação em rede social de uma mulher, de extrema direita em seu perfil no facebook. A manifestação citada representa um dos inúmeros ataques a menina de 10 anos que foi sobrevivente de violência sexual desde os seis anos de idade até ficar grávida do seu próprio tio de 33 anos. O caso ganhou espaço nas mídias sociais, especialmente pelos protestos contra o aborto o qual foi legitimado em prol da saúde e dos direitos da menina violentada durante quatro anos. No decorrer das tratativas judiciais para realização do aborto e transferência de estado para que o procedimento fosse realizado, Sara Winter¹, extremista de direita, religiosa católica, obteve os dados - de forma ilegal - da criança e local onde o procedimento seria realizada, e divulgou nas redes sociais mobilizando protestantes a impedir o aborto. Sob orientação de Sara, um grupo de extrema direita se organizou em frente ao hospital acusando a criança e a equipe de saúde, de assassinos. A criança, mais uma vez teve seus direitos violados, entre eles, seu direito ao anonimato, direito à infância, direito à saúde, direito à vida; Para os manifestantes, em toda essa cena, de horror, estava em jogo uma única causa, o aborto, o restante - e mais importante - continuava invisível;
É fundamental pensarmos como a dialética das narrativas de manifestantes denunciam questões de uma crise política, ética e moral que vivemos na atualidade, diz ela: “quatro anos sendo estuprada e não falar nada com ninguém?”. A narrativa retrata a invisibilidade de uma questão social, que é a violência sexual, a qual atinge predominantemente mulheres crianças, sendo na maioria dos casos, no ambiente intrafamiliar.
Quando silenciamos enquanto sociedade, protegemos e fortalecemos a violência. Quando a educação sexual, não é uma pauta dentro das escolas, por exemplo, sendo reconhecida como incentivo ao “sexo” ou reconhecida como “kit gay”, estamos negando uma prática preventiva e naturalizando o corpo ao seu funcionamento biológico. Produções discursivas como essa, exemplificadas na fala da manifestante “as mulheres de hoje estão pior que cachorras no cio”, destinam a mulher a uma única posição, de objeto, de animal, na contramão dos movimentos e conquistas feministas, do cuidado, da liberdade, igualdade e dos direitos humanos. Vejamos ainda, que esse discurso provém de uma mulher, narrando sobre o que é ser mulher, na sua concepção.
“Será que ela é tão inocente assim?”, fragmentos como este, descortinam discursos de ódio e de opressão, sustentados pelo discurso da “boa” família, da “boa” criação e dos “bons” costumes; Essas questões me conduziram a retomar a leitura de algumas obras clássicas de Hannah Arendt², entre elas, “Homens em tempos sombrios” (1968/2008), a qual contempla onze ensaios biográficos de pessoas que resistiram com capacidades críticas a tempos sombrios. O primeiro destes ensaios, é o discurso proferido por Hannah Arendt referente a aceitação do Prêmio Lessing da cidade livre de Hamburgo, onde faz referência ao poeta Gotthold Ephraim Lessing filósofo e crítico de arte, defensor do livre pensamento no século XVII. Neste ensaio, a filósofa menciona que o pensamento independente, não é “pertencente a um indivíduo fechado, integrado e organicamente crescido” (p.16), e nos acena para reflexões sobre a condição do sujeito no mundo e o perigo das verdades absolutas. Ao referenciar Lessing, trata sobre a dimensão da liberdade e nos lembra que “os pilares das verdades também eram os pilares da ordem política, e que o mundo (em oposição as pessoas que nele habitam e se movem livremente) precisa de tais pilares para garantir a continuidade e permanência, sem as quais não pode oferecer aos homens mortais o lar relativamente seguro” (p.18). O fragmento apresentado nesta obra, nos permite a reflexão sobre a dimensão da segurança e da tradição, como imperadores de um discurso que se sustenta e solidifica. Um lar relativamente seguro, para quem? De que política estamos falando?
Para Hannah Arendt, na medida em que o sujeito se abstém de pensar deposita sua confiança em velhas ou mesmo novas verdades, lançando-as como se fossem moedas que avaliassem todas experiências, sob uma única perspectiva. A filósofa finda essa colocação mencionando que se essa condição é verdadeira para o homem, não é verdadeira para o mundo, se fosse, o mundo se torna, um mundo inumano. Considero estas reflexões importantes e necessárias, precisamos estar atentos e atentas, sobre verdades, pilares e discursos ideológicos Os fragmentos apresentados neste ensaio, publicizados em mídias sociais, expõe nas vitrines do facebook, instagram, twitter, o mundo “inumano” o qual estamos vivendo e nos conduz a reflexões sobre como provocar mudanças sociais que conduzam ao olhar do cuidado, humanizado e isento de violência/barbárie;
Hannah, nos empresta em suas palavras alguns significados sobre a esperança, e porque não - a utopia. Se continuarmos acostumados a caminhar pela sombra, e naturalizar esse caminho, teremos dificuldade de olhar para luz, reconhecê-la de onde vem e com isso construir outras possibilidades, outras formas de ver/olhar. (ARENDT, 1968/2008)
Diante da reflexão que me proponho aqui, penso, o quanto temos que lutar e se haver, enquanto psicólogas com essas questões. Recentemente no dia 27 de agosto, a psicologia enquanto profissão celebrou seus 58 anos de regulamentação profissional. Tenho acompanhado nas diferentes mídias e informativos dos Conselhos de Psicologia, importantes pautas de uma psicologia que está em movimento: “a psicologia escolhe pela vida, não ao genocídio” (CRP/RS, 2020); “Psicologia: profissão guiada pelo cuidado” (NÓBREGA, 2020), mobilizações da psicologia pela aprovação do FUNDEB e implementação da Lei 13.935, que prevê a inclusão de psicólogos e assistentes sociais nas escolas; encontros sobre psicologia e visibilidade; boletins sobre psicologia e direitos humanos, nos diferentes cantos do nosso país, fazendo borda a tantas demandas que nos convocam enquanto profissionais, professores e pesquisadores;
Que importante é sacudir essas pautas, e junto com a poeira que nos assola, nos angustiamos, questionamos, ressignificamos discursos, refletimos sobre as nossas práticas, nosso compromisso social e caminhos de pesquisa para uma sociedade mais humana e justa. Que sejamos uma psicologia que reconheça a diversidade, que defenda os direitos humanos, que respeite a singularidade e que atue, especialmente, na prevenção, que sejamos sensíveis e atentos. Que tenhamos força e pares, coletivos, para continuar nessa travessia.
“O mundo está entre as pessoas” (Hannah Arendt, 1968/2008)
Mariana de Almeida Pfitscher, Doutoranda VIDAS e Professora Universitária.
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
NÓBREGA, Ana Sandra Fernandes Arcoverde. Psicologia: profissão guiada pelo cuidado. Folha de São Paulo. 27 de Agosto de 2020. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/psicologia-profissao-guiada-pelo-cuidado.shtml>
A Psicologia escolhe a vida: não ao genocídio!. Conselho Regional de Psicologia. 28 de Agosto de 2020. Disponível em <https://www.crprs.org.br/noticias/a-psicologia-escolhe-a-vida-nao-ao-genocidio#:~:text=Relacionando%20o%20fazer%20profissional%20ao,direitos%20humanos%20e%20que%2C%20portanto%2C>
¹ Em seu site Sara Giromini se reconhece como ex-feminista, e se considera ativista mais importante do país. É analista de políticas públicas e Coordenadora Nacional de Atenção Integral a Gestação e Maternidade, no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, desenvolvendo programas de governo para todo mandato do Presidente da República do Brasil, Jair Bolsonaro.
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Obrigada. Por um mundo mais solidário!