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Distanciamento social e uso (em demasia) da internet durante a Pandemia COVID-19: O que dizer da saúde mental?

 

Nesta semana, fui convidada pela Esther Klein, repórter da Revista Arco da UFSM, a dar uma entrevista sobre o contexto de home office, aulas a distância e como isso afeta a aprendizagem, produtividade e o psicológico das pessoas. Algumas partes da minha entrevista foram publicadas, juntamente com partes de outros profissionais entrevistados*. Escrevo aqui minha fala completa, com algumas modificações.

IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL

Nós estamos vivendo uma situação nunca vista antes por essas últimas gerações. Estamos tendo que aprender a viver com os desafios que uma pandemia coloca no nosso cotidiano. Não é fácil, entretanto, nós somos seres inventivos capazes de sobreviver às mais duras intempéries, aos acontecimentos mais difíceis. Certamente, uma pandemia tem efeitos na saúde mental.  E precisamos reconhecer que quando falamos “saúde mental”, não significa apenas aquilo que é da ordem do psíquico, do emocional, mas, também, daquilo que nos compõem fisiologicamente, biologicamente, pois, para a psicologia social, onde sustento meus argumentos, não há divisão entre mente e corpo - somos sempre relação. Por isso, a pandemia nos impacta integralmente, ainda que muitas vezes não notamos. Algumas pessoas sentem dores de cabeça, dores nas costas, ansiedade, stress, insônia e podem não correlacionar esses sintomas com o que estamos vivendo. Certamente, eles podem ser decorrentes de problemas que antecedem à pandemia, e, agora, podem estar se exacerbando em decorrência do que a pandemia dispara em nós: medo da própria morte, medo da perda de entes queridos, medo de perder o emprego, medo da solidão, entre outros. Decorre daí a importância de estudos que levem em conta a história de vida das pessoas, de modo a não se generalizar a ideia de que a pandemia da COVID-19 é a “culpada” de todo caos na saúde da população. Ela é um grave problema de saúde pública, mas há tantos outros sérios problemas que a antecedem e que as políticas de Estado têm fracassado em atender. 

AFETAMENTOS DO DISTANCIAMENTO SOCIAL

A história mostra que pandemias sempre pegam as sociedades de surpresa, ainda que haja sinais que nos mostram as falhas da humanidade em cuidar de si mesma, tais como a extinção de espécies e o aumento de casos de doenças como o câncer. É preciso muitas mudanças no cotidiano, no nosso modo de viver enquanto “humanidade”, mas é bom lembrar que a pandemia não afeta a todas as pessoas igualmente, já que as condições sócio-estruturais, econômicas e afetivas não são as mesmas para todas as pessoas. Há pessoas que estavam acostumadas a ficar mais em suas casas, investindo mais nas relações em ambiente privado e, assim, podem lidar melhor com o distanciamento social. Outras, têm uma vida social mais agitada no espaço público, gostam de sair muito, de estar em aglomeramentos. Para estas, tenho observado, o isolamento social e o distanciamento são demandas mais difícil de serem atendidas. Igualmente, há pessoas que não estão em suas casas, como é o caso de estudantes de universidades, que têm que lidar com a saudade de casa, com a falta de condições de atenderem os objetivos acadêmicos, etc. Ainda, estudos com o do “The National Institute for Health”**, no Reino Unido, recentemente realizado, mostram que os trabalhadores da saúde parecem sofrer um impacto maior em termos de saúde mental, em particular, enfermeiras. Sempre lembro de meu irmão, que é cirurgião, me dizendo de seu incômodo ao sair do hospital, após atender pacientes infectados pelo SARS-CoV-2, causador da Covid-19, e ver pessoas nas ruas, sem máscara, sem distanciamento. Lembro dele me contando do sofrimento que é chegar em casa e não poder abraçar nosso pai, que mora com ele. Então, os trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente, têm adoecido não apenas por se infectarem com o corona vírus, mas adoecido mentalmente, pois grande parte da sociedade brasileira não respeita esses trabalhadores (e tantos outros, como é o caso dos professores). 
Por fim, e mais assustador, existem muitas pessoas no Brasil e no mundo que nem sequer têm casa apropriada para morar, como é o caso de pessoas que vivem nos espaços urbanos ou que vivem em moradias precárias. Veja, então, quão complexo é entender como as medidas de proteção e prevenção no campo da saúde mental afetam as pessoas, as sociedades. E todos esses diferentes modos de afetação vão custar para serem aliviados, não somente porque ainda não temos certeza de uma vacina eficaz e que atenda a toda a população, mas porque pesquisas têm mostrado que os impactos na saúde mental que decorrem de acontecimentos trágicos passados, como guerras, desastres ecológicos, etc., podem durar muito mais tempo do que a própria pandemia.*** 

LINDANDO COM A "POLUIÇÃO" DO WI-FI

Tenho pensado muito sobre ela e discutido no nosso Núcleo de Pesquisa, o VIDAS, sobre as consequências do uso de videochamadas, ou melhor, da tecnologia wi-fi na saúde mental. Desenvolvemos uma pesquisa em conjunto com a pesquisadora Carolina Zilli Vieira, da Harvard University, Escola de Saúde Pública, que envolve o impacto de poluentes, como a radiação do wi-fi na saúde sexual e reprodutiva. Podemos estender esses impactos à saúde em geral, já que o wi-fi tem sido associado ao stress oxidativo e a efeitos neuropsiquiátricos. Tenho colhido relatos de muitas pessoas que se sentem mais cansadas do que antes da pandemia, sono na parte da tarde, tonturas, náuseas, e quando pergunto quanto tempo elas têm ficado na frente do computador ou de outra tecnologia wi-fi, todas me dizem que ficam o dia todo e, muitas, até a madrugada. Quando as oriento a diminuir esse uso e tomar providências para reduzir o risco de exposição, elas me dizem que se sentem muito melhor após prevenção. Eu mesma senti o efeito na pele do wi-fi quando eu estava estudando na Harvard, no ano passado. Eles colocaram o 5g no campus (cuja radiação tem efeitos muito mais intensos) e a partir daquele momento comecei a sentir um mal-estar, me sentir muito cansada, nauseada. Passei a desligar o wi-fi à noite quando ia dormir e tomar outras medidas de proteção. Senti imediatamente a diferença, para melhor, na minha saúde e de minha filha. Vamos precisar discutir muito sobre isso. Repensar nossas táticas de ensino em contextos de predominância da radiação, principalmente no que tange às crianças, porque são as crianças que mais absorvem as microondas de radiação.**** Junto a isso, será preciso repensar o tempo que dedicamos aos nossos filhos, amigos, familiares, colegas de trabalho sem recorrer às tecnologias poluentes. 

NOVAS EXPRESSÕES DE AFETO NO AMBIENTE DA REDE

Entretanto, quando interagimos com outra pessoa, tanto no ambiente online quanto presencialmente, continuamos a ser a mesma pessoa, não mudamos nosso caráter, nosso modo de pensar por isso. A constituição do caráter humano é uma questão ética que se cria desde o nascimento e é relacionada a inúmeros fatores, mas, principalmente, ao cuidado ético que recebemos quando bebês e crianças e às condições econômicas para uma vida segura. Por outro lado, interagir sem poder tocar na outra pessoa faz uma diferença enorme, pois o contato físico é uma experiência vital, que nos acompanha desde o nascimento. O bebê se sente amado pela mãe quando esta providencia o alimento, quando a toca com cuidado, quando a olha bem de perto com carinho… O toque é essencial… Pense no caso das\os jovens que estão com a sexualidade florescendo. Muitas\os estão em distanciamento social total ou parcial. A experiência de ser tocada\o, beijada\o, de fazerem junções presenciais está sendo adiada nem sabemos por quanto tempo ainda. 
Sob este prisma, a interação online exige dos humanos novas formas de expressão e reconhecimento de afetividade. Temos visto exposições de ódio, de raiva, deboches, bullying nas redes sociais como se a sociedade estivesse “descontrolada”, mas o que ocorre, no meu modo de ver, é uma crise político-econômica de proporções assustadoras. E as tecnologias ampliam as possibilidades de polarizar e espraiar sentimentos e pensamentos; elas mobilizam nosso imaginário de um modo sem precedente e não estamos familiarizadas com elas. Não sabemos o suficiente sobre os efeitos delas na constituição da subjetividade. Algo está mudando. Algo vai mudar. Essas mudanças deverão ser foco de atenção de diferentes campos de saber de modo a encontrarmos caminhos alternos recorrendo à potencialidade do trabalho interdisciplinar.

POSSÍVEIS CAMINHOS: POR UMA PEDAGÓGICA PSICOSSOCIAL

Precisaremos de uma pedagógica psicossocial para a internet, assim como temos uma pedagógica nas famílias, nas escolas, nos ambientes de trabalho. Nesta pedagógica, é necessário criar uma cultura dialógica sobre os benefícios e malefícios da tecnologia digital. Conversar abertamente sobre isso! Incluir nos programas de ensino o estudo sobre os efeitos do wi-fi no corpo, na subjetividade, nos coletivos. Criar rotinas familiares, laborais e educacionais onde a tecnologia não tome conta do cotidiano - utilizar menos o smartphone, pois a radiação é maior; desligar o wi-fi e colocar no modo avião quando formos dormir; manter os aparelhos com wi-fi o mais distante do corpo possível; não fornecer acesso às mídias sociais às crianças menores de 10 anos. Entendo que para mães e pais está cada vez mais difícil dizer “não” às tecnologias wi-fi, pois nós mesmas\os ficamos encantadas\os por elas, mas é necessário vencer o medo de não ser uma mãe ou pai suficientemente boa\bom caso não atendermos a todos os desejos de nossos filhos. A frustração, a falta, a falha também são essenciais para a educação dos filhos. E nesse sentido, por que não excluir todas as mídias sociais? Essa é a possibilidade mais radical e deve ser incluída no horizonte de nossas alternativas.
Enfim, teremos que ser inventivos, pensar modos de viver que levem em conta as singularidades, os contextos específicos de cada pessoa e família, sem aplicar uma fórmula única para todos. Será primordial considerar o que as ciências evidenciam (isso é fundamental em tempos de negacionismo) e lutar por políticas públicas que visem equidade, justiça para todas as pessoas. Todos nós devemos ser responsáveis por criar um mundo melhor e isso envolve, também, utilizar qualquer tecnologia, em todos os ambientes - familiar, escolar, laboral, político-institucional -, em favor de nossa saúde mental.
Não penso que devemos nos adaptar ao sistema, mas inventar formas de viver bem, apesar do avanço das tecnologias. O ser humano é tecnológico desde que aprendeu a fazer fogo. De lá para cá, fomos ampliando nossa capacidade de utilizar nosso corpo, nossa inteligência para prolongar a vida. Isso só foi possível porque descobrimos que precisamos uns dos outros. Como descobrimos isso?. Observando o mundo, pensando sobre ele e transformando-o. Então, nesse mundo moderno, permeado por novas e intrigantes tecnologias, não bastará se adaptar, se acomodar, se calar a interesses financeiros insaciáveis; será preciso nos reinventarmos. 
Como podemos fazer isso? Refletindo constantemente sobre como queremos viver, não como indivíduos, um separado do outro, um competindo contra o outro, nos matando objetivamente e simbolicamente, mas como coletivos que desejam um mundo melhor para todos. Porque se eu não estou bem, o outro não estará. Essa lógica é de difícil compreensão. Mas é só pensar na questão da violência urbana – não adianta em me cercar de grades e aparatos tecnológicos de segurança, pois isso só reforça o sentimento de insegurança. É preciso dar condições dignas de trabalho, educação, moradia a todas as pessoas se quisermos nos sentir seguros. Essa reflexão envolve perguntar: Por que certos grupos sociais, certas corporações, certos agentes políticos fazem o que fazem? Por que nos submetemos a certas ações e desejos que não fazem bem ao coletivo, se justamente é o coletivo que nos dá condições de vida? O que isso tem a ver com a ideologia do individualismo, com os sistemas econômicos e políticos? São muitos os fatores que se relacionam com a produção de saúde mental. Ao contrário de se adaptar, penso que devemos resistir, tensionar o que parece imutável, acreditar que podemos mais que isso, ter esperança que o mundo pode ser melhor. Quando nos adaptamos sem questionar, os sintomas falam e nesse processo se instala o stress, o adoecimento. Talvez você pergunte: “Mas é possível escapar da internet?”. Seguindo o que tentei expor aqui, esta pergunta precisa ser reformulada, no meu entender. A internet em si não é “o mal”, ela é mais uma invenção do ser humano que cria infinitas possibilidades. Agora, como utilizar essa invenção de modo inteligente, de modo que ela seja um espaço potencial para a criação de relações seguras, afetivas, que nos dê amparo psicossocial? Como utilizá-la para que as pessoas e os coletivos se fortaleçam durante a longa e difícil (mas não impossível) luta por um mundo melhor para TODAS as pessoas? Como não nos deixar capturar por interesses obscuros e cruéis de grandes corporações que se utilizam desse espaço para pensar só em si mesmos? Certamente não tenho respostas, tenho algumas pistas que procurei trazer aqui na nossa conversa... afinal, parafraseando o poeta espanhol Antonio Machado, o caminho se faz ao andar, ou melhor, nos dias atuais, o caminho também se pode fazer ao navegar...

*  Entrevista Adriane Roso Revista Arco

Textos Citados

* NIHR (2020). The potential impact of COVID-19 on mental health outcomes and the implications for service solutions. Bristol: The National Institute for Health Research. https://arc-w.nihr.ac.uk/Wordpress/wp-content/uploads/2020/04/COVID-19-Rapid-Review-COVID-and-Mental-Health-FINAL.pdf 

** Ornell, F.; Schuch, J. B.; Sordi, A. O., Kessler, F. H. P. (2020, Jun.). “Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Braz. J. Psychiatry, 42( 3 ): 232-235. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1516-4446-2020-0008 

*** Morgana, L. L., Kesari, S., & Davis, D. L. (2014). Why children absorb more microwave radiation than adults: The consequences. Journal of Microscopy and Ultrastructure, 2, 197–204.


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