A crônica “Pertencer” , de Clarice Lispector, publicada em 1968 no Jornal do Brasil traz um pouco sobre a angústia, a melancolia e a gratificação que envolvem o querer pertencer. A solidão de não ter com quem compartilhar as alegrias e tristezas da vida é equiparada a um presente todo embrulhado em papel enfeitado sem um remetente. É como não ter alguém para acolher as dores e partilhar os prazeres. Na sua escrita, Clarice pontua que vai “esquecendo de ser gente ao longo da vida” à medida que não consegue se sentir identificada ou acolhida por algo ou alguém, afinal boa parte do que é “ser humano” diz sobre trocas, coletivos, grupos.
No mês de julho fomos convidadas pelo projeto “Viva Bem a Idade que Tem”, do departamento de Terapia Ocupacional da UFSM para realizarmos uma ação em uma associação que acolhe e abriga mulheres que necessitam de cuidados especializados aqui em Santa Maria. Foi proposta uma reflexão sobre a temática “pertencimento” a partir da crônica de Clarice Lispector, a ideia era despertar nas idosas questionamentos sobre os sentimentos que nutrem no/pelo lar e pelas outras pessoas que convivem. A dinâmica foi organizada de forma livre e espontânea, algumas mulheres contaram sobre sua história de vida e a forma que chegaram até a até esse lar. (Quer saber mais sobre esse lar, clique aqui).
As histórias dessas mulheres são singulares, afinal todo o desenvolvimento humano, inclusive o envelhecimento, é heterogêneo, ou seja cada uma possui suas particularidades e carrega consigo suas próprias marcas. Entretanto, de forma geral elas mencionam a importância em ter alguém para que elas se sintam cuidadas e acolhidas. As mulheres evidenciam isso ao falar que precisam de pessoas para ouvi-las no lar, e que é muito importante terem esses espaços de escuta.
Percebemos por meio da atividade que elas têm uma fala bastante intensa, e ficam irritadas quando, por exemplo, outra mulher fala por muito tempo, é como se aquela mulher estivesse ocupando o seu tempo de fala e então restasse pouco tempo para que ela pudesse se expressar. Em geral, as mulheres queriam muito falar, inclusive algumas chegam a se levantar do lugar em que estão sentadas para tentar interromper a outra mulher que já está falando há um bom tempo.
As expressões faciais e corporais são muito singulares, há mulheres que estão felizes por falar e estar presentes naquele momento, que retratam a escolha de estar naquele lugar e como se sentem bem naquele ambiente. Enquanto há outras que aproveitam o momento para contar histórias dolorosas de sua vida e carregam consigo uma expressão tristonha e até mesmo raivosa de como chegaram até o lar. Percebemos que, as mulheres que por escolha própria estão no lar ficam revoltadas com as mulheres que não tiveram escolha de estar lá. É como se não entendessem o porquê daquela mulher não sentir o mesmo que ela ao falar do local em que moram.
A dinâmica operou como uma rede de trocas, na qual elas puderam se sentir identificadas umas com as outras e também oferecer suporte e afeto àquelas que têm histórias distintas das suas. Embora tenha sido um período curto, elas puderam relembrar alguns aspectos de suas vidas e contar sobre as memórias que carregam. Algumas comentaram sobre se sentirem sozinhas antes de entrar na instituição e como é bom ter pessoas que possam ouvir suas histórias agora. Durante a atividade, uma delas estava relatando acontecimentos sofridos de sua vida e outra mulher comenta: “ela sempre fala sobre isso”, como se o pacote de presente embrulhado, expresso por Clarice Lispector, mesmo que cheio de cicatrizes e dores, nesse caso possuiu uma remetente disposta a escutar.
Longe de qualquer idealização do processo de institucionalização, entendemos que existem dificuldades enfrentadas por essas mulheres ao residirem em um lar e terem sua rotina atravessada pelas regras do local, sujeitas à sistematização de horários e diretrizes da ILPI. Quando as normas e a rotina são padronizadas, como geralmente ocorre em associações de amparo que possuem características de instituições totais, as mulheres tendem a seguir as imposições do local por conta do coletivo e olham menos para suas subjetividades, ou seja os gostos próprios e as particularidades nas atividades diárias (vestimenta, alimentação, lazer) vão sendo deixadas de lado.
As intervenções, como essa roda de conversa sobre pertencimento ou as atividades do projeto “Viva bem” (desenhos, sessão de massagem, música, dança, fotografia), podem trazer um pouco dessa “busca por si mesma”, deixada de lado no cotidiano. Nesse sentido, as mulheres saem da rotina e se experimentam em novas atividades.
É relevante oportunizar autonomia para essas mulheres, de forma que elas consigam pontuar suas vontades, desejos, anseios e trazer um pouco de si para o espaço do lar, para que isso seja feito, é importante ouvi-las, do que elas sentem falta? O que pode ser feito para que elas tenham suas vontades acolhidas? Quais atividades tornam os dias delas melhores?
Também, podemos perceber a infantilização da velhice em espaços de dependência em relação aos cuidadores. As pessoas, quando são consideradas “velhas”, não são estimuladas a realizar suas atividades de vida diária. Ao contrário, tendemos a fazer por elas, como se elas não conseguissem mais realizar atividades básicas. As tratamos como bebês! Claro que há pessoas que possuem alguma limitação física, mas precisamos incentivá-las a executarem aquilo que o corpo ainda permite e sente vontade de ser feito. Isso significa estimular a autonomia, permitindo que a pessoa faça aquilo que está ao seu alcance e dando suporte no que for necessário. Assim, encorajamos a espontaneidade delas e oportunizamos a liberdade para que façam suas escolhas.
Portanto, muito há de ser feito e questionado no trabalho em instituições. Percebemos que existem significativas potencialidades, por exemplo no trabalho grupal e multidisciplinar. Além disso, refletimos sobre o papel da Psicologia nesses espaços e principalmente a Psicologia Social, que frequentemente promove inquietações, faz com que nunca mais consigamos ver as situações apenas da forma que elas se apresentam, é necessário estarmos atentas e críticas ao que está posto.
Fontes Consultadas para a escrita do texto:
GOFFMAN, E. (1961/2010). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo (SP): Perspectiva.
ROZENDO, A. da S.; JUSTO, J. S. Institucionalização da velhice e regressão: um olhar psicanalítico sobre os asilos de velhos. Revista Kairós-Gerontologia, [S. l.], v. 15, n. 4, p. 25–51, 2013. DOI: 10.23925/2176-901X.2012v15i4p25-51. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/17078. Acesso em: 12 jul. 2023.
ZANELLO, V.; SILVA, L. C. E .; HENDERSON, G.. Saúde Mental, Gênero e Velhice na Instituição Geriátrica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 31, n. 4, p. 543–550, out. 2015.
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