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Coisas de Criança ou de Como Enclausuramos Corpos de Crianças

Birras de Criança  ou de Como Enclausuramos Corpos de Crianças


Pintor: Vincent van Gogh - 1886-1887 
Obra: Três pares de sapato.


Fotos tiradas no Museu da Harvard, em 2019, por Adriane Roso

As Botinas de Guerino: novos tempos mesmas resistências

Às vezes, temos uma mania de achar que as crianças mudaram muito e que só as crianças da atualidade têm manias e fazem birras por qualquer coisa.
A Jess tem implicância com sapatos. Não gosta de nada que aprisione seus pés. Por ela, só andaria descalça, de chinelo ou crocks (Ah, que invenção!). Já fiz de tudo. Forcei, subornei, ignorei... Mas as lágrimas que saem não são de crocodilo. São reais.
Primeiro achei que só ela fazia isso e que eu devia ter culpa nisso tudo. Afinal, cada vez mais as crianças estão sendo mimadas e terminamos por atender seus pedidos. Mas, certo dia, chego à escola e vejo que uma de suas colegas está inchada de tanto chorar. Inicialmente, a mãe dela não quis me falar o que era, mas quando contei da minha dificuldade com os sapatos da Jess, ela desabafou: "Mas com a Fulana acontece o mesmo!". Aí, outras mães se agregaram...
Mas isso é apenas uma introdução às pequenas histórias que vou narrar.

História 1: As botinas de Guerino
Há muitos anos atrás (por volta de 1937), sapato era artigo de luxo (hoje alguns ainda são!). Na Linha 18 - Colônia Italiana perto da cidade de Passo Fundo - as crianças não usavam calçados. As de maior poder aquisitivo, ganhavam um par de sapatos para ir à missa. Iam até a igreja com os sapatos de baixo do braço e quando chegavam à porta colocavam os calçados.
Meu nonno comprou ao meu pai um par de botinas, que era mais acessível do que sapatos. Meu pai deveria ter uns sete anos.
Ele odiou as botinas. Além de serem incômodas, pois seu cano roçava as canelas, ele tinha vergonha, pois não eram SAPATOS. Então, quando iam à missa, calçava as botinas no caminho (meu nonno seguia à frente) para ir gastando as botinas. Chutava tudo quanto era pedra, para quem sabe, destruir as botinas e nunca mais precisasse passar vergonha.

História 2: O vestido de Natal
Fui passar o Natal na casa de meus nonnos. Isso deve ter acontecido no ano de 1975, quando eu tinha oito anos.
Minha nonna quis me dar um presente de Natal e considerou que um vestido seria uma boa pedida. Fomos caminhando até a loja Graziottin, também em Passo Fundo. Chegando lá, ela escolheu um vestido para mim e, é claro, detestei o modelito. Era azul-céu pálido, com um macho na frente. Eu queria mesmo era um brinquedo, mas já que não tinha escolha, queria pelo menos poder decidir sobre o modelo do vestido. Não ganhei a batalha. Sai de lá com o vestido escolhido por nonna Thereza, batendo os pés e deixando minha nonna para trás no longo caminho de volta à casa. Ainda lembro dos trilhos que costeávamos e de minha indignação. Conta meu pai nos dias de hoje que minha nonna denunciou que eu fui o trecho todo dando beliscões nela. Não sei se é verdade, mas existe alguma possibilidade!
Algumas conclusão que podemos tirar dessas pequenas histórias:
(a) botinas e vestidos são invenções incômodas;
(b) as crianças têm desejos e gostam de escolher o que vestem e calçam;
(c) as crianças não mudaram tanto assim como imaginamos;
(d) "nós, pais, sempre queremos impor algo aos filhos; e
(e) forçar" as crianças a usar algo de que não gostam não as matam.
Assim, deixemos os sentimentos de culpa de lado e prossigamos na difícil labuta de educar bem nossas crianças.

História 3: A menina que só queria tomar sorvete

Estava em uma loja de roupas infantis, sentada perto do provador, esperando minha filha experimentar roupas. entra na loja uma mãe, muito bem vestida, com sua filha de aproximadamente 9 anos. 
A mãe começa a mostrar umas legs para ela e a menina não demonstra nenhum interesse nelas. E diz: "Quero tomar sorvete".
A mãe insiste e a menina repete: "Quero tomar sorvete".
A mãe continua mostrando as roupas e a menina não prestava atenção. Então, a mãe diz:
Então, tu não quer comprar leg nenhuma!"
A menina responde: "Essa que eu tô usando tá boa. Vamo tomá sorvete?".
A mãe fala: "Vamos fazer assim. Eu te levo a tomar sorvete, mas ai tu me promete que a gente volta e tu experimenta as legs".
Trato feito! Vitória da menina? Vitória do consumismo!
Conclusão: Somos nós adultos que criamos esse desejo sem nexo de consumir por consumir e não consumir por necessidade.

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