A ação caridosa: questionar seus limites para provocar transformações *
Vanessa Soares de Castro**
Sinto um certo incômodo quando me deparo com o termo caridade. Lembro de que há alguns anos eu doava pequenos valores mensalmente para uma Organização Não Governamental (ONG) conhecida internacionalmente, cujo nome não é necessário citar no momento. Comecei a doar porque recebi uma ligação da ONG, e senti que a caridade poderia ser uma forma de fazer bom uso do dinheiro que recebia enquanto bolsista na graduação em Psicologia. Entretanto, após algum tempo, minhas doações passaram a me incomodar. Afinal, para onde estava indo aquele dinheiro? A moça que fazia as ligações dizia que era para compra de caixas de leite para crianças carentes. Mas que crianças eram essas? Onde viviam? Além do leite, o que mais era feito por elas?
Não entrarei aqui na discussão do conceito teológico de caridade, mas sim em alguns dos aspectos práticos e instituídos que a ação caridosa costuma assumir. Obviamente, muitas vezes, pessoas em situações de extrema pobreza precisam de condições mínimas para começar a desenvolver sua autonomia e participação social, o que pode ser proporcionado (mesmo que não exclusivamente) pela caridade. Mas e depois? De que maneira a prática da caridade busca contribuir para mudanças sociais reais? O que se espera da prática caridosa?
Por meio da caridade, aquele que detém os recursos, sejam pessoas ou empresas, podem ser generosos e ceder um pouco do que tem para ajudar o próximo. Entretanto, esta ajuda geralmente não objetiva mudar as situações geradoras de desigualdade, de promover condições para que as pessoas que se beneficiam dela, no momento, possam chegar a uma condição mais autônoma no futuro. Essa relação acaba também naturalizando as injustiças sociais, engessando as possibilidades de ação, e mantendo os sujeitos na posição em que estão - o caridoso segue sendo o detentor dos bens materiais, da capacidade de doar, e o necessitado, continua necessitado.
A questão da naturalização das posições sociais do caridoso e do necessitado, me remete à uma outra situação: o discurso que muitas crianças escutam de que deveriam estar felizes por não estar morrendo de fome no continente africano, por ter cama para dormir, roupa para vestir e comida para comer. Já presenciei oeste discurso em uma instituição de ensino, sendo usado para ensinar adolescentes a dar valor ao que têm. Entretanto, pode ser extremamente problemático (principalmente para uma instituição de ensino), pois não explica porque esses problemas ocorrem, não problematiza o que apresenta e, principalmente, não propõe que a fome e a miséria devam acabar. Dá-se um sentido para a fome e a miséria; ela passa a ter a utilidade de nos fazer sentir-nos gratos pelo que temos. Naturaliza-se o que não deveria ser naturalizado.
A relação que vejo entre a caridade e o discurso moralizante que usa um estereótipo de “crianças africanas” como exemplo é justamente esta: a naturalização das desigualdades sociais. Ao estabelecer uma relação superficial e não-problematizadora com esta problemática, não se fala e nem se objetiva a mudança nas estruturas sociais que levam à má distribuição de recursos, seja em termos locais ou mundiais. Me parece que, em ambos os casos, não nos deixamos realmente afetar pela situação do outro, a ponto de querer que suas realidades sejam transformadas, e que eles próprios sejam sujeitos desta transformação. Na caridade, em muitos contextos, aproxima-se apenas o suficiente para realizar a ação caridosa, para demonstrar compaixão e generosidade, mas não o suficiente para se deixar afetar, para considerar o outro como um igual.
Se é que posso fazer uma proposta, não proponho que aqueles que fazem doações, cessem o repasse que fazem. Convido, sim, para que se envolvam ainda mais, para que conheçam a causa da qual fazem parte, como os recursos arrecadados são gastos, quais suas reais potencialidades e limitações. Principalmente, convido para que reflitam sobre os motivos da caridade ser necessária, sobre como é possível que no mundo se produza tanta riqueza, mas não se proporcionem meios para que esta riqueza seja usufruída por todos.
Apesar de reconhecer uma certa acidez em minhas palavras, não defendo que a caridade seja sempre inocente, ou mal-intencionada, mas sim que é preciso problematizá-la, e ir além dela. Promover ações realmente transformadoras da sociedade vai muito além da caridade. Primeiramente, é preciso saber o que transformar. Para isso, é preciso ir além das aparências, problematizar o que está posto, questionar o que há por trás de cada dado, de cada informação que nos chega, para propor ações que ajam nas estruturas das injustiças sociais. Em seguida, me parece que ações transformadoras envolvem entrar em contato com o outro, construir junto com ele, estabelecer uma relação de igualdade. Nessa perspectiva, a caridade, como a descrevi, já não cabe, pois se busca um mundo onde ela não é mais necessária. Talvez a partir daí se possa ressignificar a proposta da caridade, não mais como uma relação unilateral, mas como possibilidade de trocas, de redes de solidariedade, que fomente as relações de reciprocidade e de co-construção do mundo que compartilhamos.
Para pensar mais sobre o assunto
Dica de Filme: Quanto vale ou é por quilo?
* Texto de opinião elaborado como exercício para a disciplina Oficina de Produção Textual I do Mestrado em Psicologia da UFSM, ministrada pela Prodª Drª Adriane Roso.
** Psicóloga do IFRS campus Ibirubá, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSM.
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Obrigada. Por um mundo mais solidário!