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Relato sobre uma vida precária: existências invisíveis

Por Catiele dos Santos, mestranda em Psicologia pelo PPGP/UFSM (2019-2021), tocada pelas minorias e questões sociais que continuam a atravessarem sua prática e percurso acadêmico. Afetada pelas vidas precárias que a sociedade finge a existência, todavia as põe em negação e as condena à clandestinidade e, quando não, à morte.

 


 

 

 

 

 

 
O conceito de "vidas precárias" (BUTLER, 2015a) passou a fazer mais sentido quando ingressei no mestrado em psicologia na Universidade Federal de Santa Maria e, em específico, no Núcleo de estudos Núcleo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Psicologia Clínica - Social (VIDAS, 2017). Vidas precárias são, em si, definidas por Butler (2015a) como as existências que "podem ser eliminadas de maneira proposital ou acidental; sua persistência não está de modo algum garantida” (BUTLER, 2015a, p.46). 
 
A partir desse vórtice, entende-se que há sujeitos que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há vidas que dificilmente são reconhecidas como vida (BUTLER, 2015b). O conceito de vidas precárias, assim como os pressupostos Teoria da Dominância Social (TDS) 1 e, em específico, a dimensão desta que ressalta que entre aqueles que detém o poder aquisitivo e quem não os detém, há um abismo que, entre tantas facetas, gera discriminação, racismo, xenofobia e todo tipo de "ismos" e "fobias" que persistem em nossa sociedade.
 
Atualmente, em meu percurso como pesquisadora e pessoa implicada com as causas e minorias sociais, a articulação entre essas duas grandes e necessárias teorias alicerçou e tornou maior estímulo meu pensamento e em relação à minha determinação e papel ativo frente às discriminação, pré conceitos, racismo, homofobia e todos os tipos de diminuição do que é uma vida humana, pois acredito que o pois creio que a mudança começa em nós mesmos, para depois alcançar instâncias e instituições maiores e mais poderosas.

Remontando à época da minha graduação em Psicologia, recordo e reflito sobre o quanto o que estudo hoje, em moldes acadêmicos, atravessava meu cotidiano e minhas práticas enquanto estagiária de psicologia. Neste momento da escrita, peço licença aos que temem assuntos "tabus" ou considerados "fortes demais" à escuta, para que possa relatar, em partes, e de forma ética, acerca de uma vivência junto a um CAPS AD, no qual atuei por quase dois anos como estagiária, ocupando espaços, mediando oficinas, realizando acompanhamento terapêutico e acolhimento às pessoas que procuravam o serviço.

Dizem por aí que quando as emoções falam e as ideias se agitam, a escrita acontece sem ter hora, lugar, espaço ou tempo. Ela nasce da necessidade de dizer “algo”, mesmo que esse “algo” não seja “bonito”, “agradável aos ouvidos”, principalmente daqueles que têm amor à lógica, à beleza, à “efetividade” e à “resolutividade” de profissionais, instituições, políticas, entre outros, no campo da atenção à saúde mental. Este relato fala de uma experiência sentida, vivida, inesperada para uma acadêmica do curso de Psicologia, estagiária recém-chegada ao local no qual esta vivência aconteceu e a quem tal situação, enquanto ordem do acontecimento, inquietou e, ao mesmo tempo, levou à necessidade desta escrita. Estas linhas apresentam ainda, sobretudo, uma denúncia, que aponta a necessidade de colocar essa vivência no coletivo, como forma de mostrar que algo falhou, fugiu à regra, “um caso que não deu certo”... Sem querer, com isso, que a denúncia passe a fazer oposição, venha a causar descrédito no nosso papel enquanto psicólogos e na atribuição de um dispositivo como o CAPS, pois, em meio a tanto retrocesso e desmonte, um relato que denuncie e também evidencie ações é um suspiro, um mergulho com condição de voo...

A primeira cena que me vem à cabeça quando lembro do caso de L (nome fictício) é de uma pessoa que mal conseguia manter-se de pé, nem ao menos conseguia firmar a caneta para escrever seu nome na ficha de entrada da recepção. Ao escutá-lo, L. afirmava não comer há três dias, pois sabia que queriam matá-lo. Era ali, na minha frente, que buscava escuta e acolhimento para as "coisas" (que não são coisas), e sim vidas (dignas) humanas, que a sociedade desligitima e toma como descartáveis. No dia posterior, ao abrir a porta e constatar que ele retornava ao CAPS após a primeira escuta, refleti que ele havia sido negligenciado, posto não ter recebido cuidados médicos do serviço de saúde, pelo período necessário à sua estabilização e retomada do acompanhamento junto ao CAPS. Voltando a escutá-lo, L. falava de sua desesperança com a vida, dizendo que, no seu caso, a morte era a melhor saída... 

Me questiono: o que seria pior do que o suicídio (é uma pergunta para gerar reflexão)? Afinal, como referia, àquele a quem a família não dedicava cuidado, que sempre conviveu com privações e amargura desde a tenra infância… por que não era "melhor" e "mais fácil"; (e menos sofrimento causaria) a sua própria morte? Todo tempo a que lhe destinei escuta, era como se ele me perguntasse se tinha direito de morrer, porque diante de sua realidade, nada mais parecia possuir direito de escolher, porque a sociedade e o Estado lhe negavam o mais básico e digno a uma existência digna. A angústia de L., seu sentimento de impotência diante da vida, das situações que presenciava envolvia muito além do sofrimento desde criança, à relação familiar violenta, mas, principalmente, à liberdade de viver uma vida plena e com qualidade que a ele vinha sendo negada; como a tantos outros "L." por aí.

Buscando conexões com a Teoria da Dominância Social (TDS) e seus pressupostos teóricos sociais, esta tem seu início marcado pela observação básica de que as sociedades humanas, em geral, possuem tendências a se estruturarem em forma de sistemas grupais baseados em hierarquias sociais, que constem, então, na existência de grupos subordinados na parte inferior da pirâmide social e de um pequeno número de grupos dominantes e hegemônicos no topo desta pirâmide (SANTOS; AMÂNCIO, 2014). O grupo dominante é caracterizado por possuir valores sociais positivos desproporcionalmente compartilhados (i.e., os bens materiais e simbólicos que as pessoas se esforçam para conseguir, como poder, autoridade, elevado estatuto). 

Já os grupos dominados possuem valores sociais negativos amplamente compartilhados (e.g., baixo poder e estatuto social e ocupações com risco elevado).podemos traçar alguns paralelos que levaram ao desfecho da (sobre)vida L. Afinal, no entendimento de Pratto et al. (1993), os sistemas de hierarquias grupais são muito difíceis de se modificar, posto possuírem um alto grau de estabilidade, apesar de existirem sistemas paralelos que lutam contra as hierarquias sociais e que, em alguns casos, observam-se algumas mudanças no sentido de moderar as desigualdades sociais. Sidanius e Pratto (1999) distinguem entre as hierarquias sociais baseadas nos grupos e nos indivíduos. As hierarquias sociais baseadas nos grupos estão relacionadas com o poder social, o prestígio e privilégio que uma pessoa possui por pertencer a um determinado grupo (e.g., a uma classe social, etnia ou sexo). Nas hierarquias sociais baseadas nos indivíduos, as pessoas podem desfrutar do poder, do prestígio, etc., graças às suas características individuais (e.g., inteligência e talento). Os dois tipos de hierarquias não são independentes, sendo mais comum que as realizações pessoais e o estatuto das pessoas estejam relacionados com o estatuto e o poder dos grupos de pertença do que o contrário.

(i) um baseado na idade (onde as pessoas adultas e de meia idade têm um poder desproporcionado sobre as crianças e as jovens). Exemplo: sustentados em Sidanius e Pratto (2012), podemos compreender que as relações assimétricas produzidas pelo sistema hierárquico geracional (no qual os adultos e pessoas de meia-idade possuem poder social desproporcional em comparação com as crianças e os adultos jovens), figuram como um dos pilares sociais para as violências vividas na adolescência.

(ii) outro baseado no gênero (segundo o qual os homens têm mais poder social e político do que as mulheres). De todos estes sistemas, o mais estável, e em que é mais improvável a mudança do papel, é o que se baseia no género. Exemplo: Sexismo (SIDANIUS; PRATTO, 1999; SANTOS; AMÂNCIO, 2014). Nesta perspetiva, o sexismo pode ser visto como uma ideologia que mantém as diferenças entre homens e mulheres,favorecendo a superioridade dos homens. Também a meritocracia é um exemplo de um mito legitimador, sendo o sistema social discursivamente baseado no mérito. As pessoas mais orientadas para a manutenção da hierarquia social baseada nos grupos (i.e., com uma maior “orientação para a dominância social”4) são mais propensas a apoiar as crenças associadas ao mérito (e.g., a crença num mundo justo, a crença de que há igualdade de oportunidades entre os grupos e a ideia de que os resultados refletem a competência das pessoas) (PRATTO et al., 1993). 

(iii) outro baseado no que designam “conjunto arbitrário” (que consiste em determinadas distinções, socialmente construídas e altamente salientes, baseadas em características como etnia, estado, nação, classe social e religião). Exemplo: sistema baseado em divisões arbitrárias está mais associado a elevados graus de violência, opressão e barbárie. Segundo esta teoria, a hierarquia social baseada nos grupos produz-se e mantém-se devido a três processos básicos:

(i) conjunto de discriminações individuais - refere-se aos atos individuais quotidianos simples, e por vezes bastante discretos, de discriminação de uma pessoa face a outra;

(ii) conjunto de discriminações institucionais - refere-se às regras, procedimentos e ações das instituições públicas ou privadas (e.g., parlamentos, hospitais ou escolas) que promovem, implícita ou explicitamente, distribuições assimétricas e desproporcionais de valores negativos e positivos, a partir da hierarquia social instituída. As instituições também ajudam a manter a hierarquia social, através do uso do “terror sistemático” (violência direcionada desproporcionalmente aos grupos dominados);

(iii) a assimetria comportamental - refere-se às diferenças comportamentais das pessoas que pertencem a grupos situados em diferentes níveis do continuum do poder social. Estas diferenças podem contribuir e ser reforçadas pelas relações hierárquicas baseadas nos grupos dentro do sistema. Segundo Sidanius e Pratto (1999), estes três processos são regulados por “mitos legitimadores” (i.e., atitudes, valores, crenças, estereótipos, ideologias que justificam, moral e intelectualmente, as práticas sociais que mantêm os valores sociais dentro do sistema social) que servirão às pessoas para apoiar um sistema de hierarquia social baseado nos grupos, isto é, justificam a dominância social. Há “mitos paternalistas” (a hegemonia serve a sociedade, olha pelas minorias incapazes); “mitos recíprocos” (sugere que a hegemonia e os outros grupos são realmente iguais); e “mitos sagrados” (o direito Divino dos reis - mandato aprovado pela religião para a hegemonia governar).

Retomando o caso de L., nada mais lhe causava tanta dor quanto não ter liberdade, não poder “voltar a ser ele, poder fazer as coisas que gostava, assim não queria mais continuar vivendo”... L. estava cumprindo pena há alguns anos por furtar um objeto de dentro de um carro, levando um período extenso até ser liberado para o semiaberto e passou a ter que pernoitar no presídio municipal todas as noites. Será justo ter que ser forçado a conviver justamente com o que mais se deseja evitar e esquecer? Alguém, ou algo detém o poder para empenhar tamanho aprisionamento subjetivo? E quando escrevo sobre isso, desejo deixar claro a não referência ao uso de drogas, mas à violência, algo tão presente e marcante na vida de L. Não contei quantas e quão intensas foram as repetidas vezes L. relatou estar sendo vítima de diversos tipos de violência e abuso pelos colegas de alojamento, além da violência psicológica realizada por funcionários locais. Porém, mantenho vivas na memória as palavras e as lágrimas derramadas por ele ao mencionar o período anterior à progressão para o semiaberto, no qual cumpriu parte da pena no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF). L. afirmou terem realizado “coisas muito ruins” com ele, as quais não conseguia revelar sem chorar e dizer que queria morrer. 

A violência imposta a ele e a qual tenho me referido não foi imposta apenas neste momento, mas incidiu sobre ele desde a negligência familiar ao atendimento fornecido pelos serviços de saúde que deveriam lhe permitir acesso e acolhê-lo. Diante a isso, a violência e as vidas que importam se tornam transparentes frente aos olhos de quem enxerga as sutilezas que as violências institucionais podem impôr. Na semana posterior, L, retornou, em uma quarta-feira, vindo acompanhado de sua tia, a quem referia ter muito carinho. Nesta data parecia disposto, estava mais falante e aparentava certa tranquilidade. Ele vinha porque queria conversar com alguém, ou seja, passar no plantão (se possível com “o doutor”, eu sabia que era do psicólogo a quem se referia, ou comigo). 

O “doutor” não teria como realizar a escuta de L., pois estava em atividade em um dos grupos, então, eu e a médica clínica realizamos sua escuta. L. vinha à procura de orientações a respeito da maneira como poderia proceder para cumprir sua pena fora do semiaberto, porque, em virtude de seu estado, estar lá prejudicaria seu tratamento e ele gostaria de poder cumpri-la de outra forma, inclusive inserido em atividades do CAPS, posteriormente. A médica clínica, então, explicou que ele precisava ir, na companhia de sua tia (já que ela estava disposta a fazer o que fosse possível para ajudar o sobrinho a viver em melhores condições e recuperar sua saúde), a buscar cópia de um prontuário que ele afirmava possuir numa unidade de atendimento psiquiátrico na cidade de Santa Maria (RS); para que, assim, após tê-la nas mãos, ele pudesse ser avaliado pelo médico psiquiatra do CAPS e obter um laudo, com a finalidade de levar à defensoria pública.

No entanto, quando se trata de justiça, apesar de desejarmos poder fazer algo, não é possível fornecer garantias sobre o tempo que todo esse processo demora a ser levado a efeito. Asseguramos a L. que o CAPS, enquanto equipe, faria o possível para que ele viesse a alcançar o que desejava que ele poderia continuar vindo em busca de apoio no local, mas isso não foi suficiente. Após termos agendado a avaliação psiquiátrica para L., lembro que no corredor, após sair da sala, ele me olhou no fundo dos meus olhos e disse: “Depois, eu vou poder vir aqui participar das oficinas do CAPS? E conversar contigo vou poder? Você vai estar aqui, não vai?” Respondi: Sim, estarei aqui para lhe escutar (conversar, como você diz). Reflito que talvez por ter realizado e presenciado as escutas de L. e de perceber que ele, em algum momento, apresentava alguma esperança na vida, o motivo pelo qual eu  tenha sentido o impacto da notícia de sua morte alguns dias depois... 

Dois dias depois para ser mais “precisa”, numa sexta-feira pela manhã, recebemos a notícia. L. havia se suicidado, logo após chegar do presídio municipal onde pernoitava, embora tivéssemos realizado progressos em seu último acolhimento. Se algo falhou, foi negligenciado, onde se esconde essa lacuna? Nas vidas que "nada produzem para a sociedade"? Nas violências perpetuadas pela falta de acesso e cuidado? Será que L. não é mais uma vítima de um sistema que lucra com vidas precárias, em que o genocídio é uma das saídas, mesmo pelo suicídio?

 

Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. 8.  ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2015a. Coleção Sujeito & História.

BUTLER, J. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto (int) Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2015b.

PRATTO, E, SIDANIUS, J., & STALWORTH, L. M. (1993). Sexual selection and the
sexual and ethnic basis of social hierarchy. In L. Ellis (Ed.), Social stratification and
socioeconomic inequality: A comparative biosocial analysis (pp. 111-137). New York:
Praeger.

SANTOS, D. J. DA S.; PALOMARES, N. B.; NORMANDO, D.; QUINTÃO, C. C. A.
Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar. Dental Press J Orthod, v.15, n.3,
pp.121-4, May-June 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dpjo/v15n3/15.pdf

SIDANIUS J.; PRATTO, F. Social dominance theory. In: PAUL A. M. VAN LANGE;
ARIE W. KRUGLANSKI; E. Tory Higgins Handbook of Theories of Social
Psychology, 1 st ed., v.2., pp. 418-439. New York: Sage, 2012.

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